MELHORES CONTOS – MOACYR SCLIAR
Texto de Regina Zilbermann
Desde o livro de estreia, Histórias de médico em formação, Moacyr Scliar estabiliza algumas características de seus contos. A primeira delas é a preferência por personagens carentes de identificação — vale dizer, predominam nas histórias seres, a maioria sem nome ou qualquer outro traço que os individualize, que representam tipos genéricos, modelos de ação e comportamento, em vez de personalidades cuja intimidade e psicologia são vasculhadas pela pena do escritor.
Outra característica é a preferência pelo insólito. Não que ele narre acontecimentos impossíveis ou sobrenaturais, mas os fatos são, no mínimo, fora do comum. Se não são os fatos que escapam ao usual, estranho é o modo de apresentá-los, o que desvela a outra face das coisas, pessoas e acontecimentos.
Pequena história de um cadáver é exemplar das características apontadas. Pois, narrando o trabalho de alunos de Medicina, o escritor opta por apresenta-los sob a ótica de Maria, o cadáver que os jovens estudam. Escorrega, assim, para o fantástico no que diz respeito ao foco escolhido; mas não perde de vista o Realismo das cenas, quando descreve as operações procedidas pelos estudantes.
Estes, por sua vez, são introduzidos como os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, a classificação indiciando o modo como são qualificados pelo narrador. E o fato de que, na continuação da história, não sejam nomeados de maneira diversa revela o desejo de não lhes conceder qualquer individuação, a fim de que tenham condições de representar, mais genericamente, tipos de atitudes encontradas na juventude universitária: as do ambicioso, de revolucionário, do sempre bem sucedido etc.
Em O carnaval dos animais, Scliar refina estas características: na maior parte das histórias, as personagens não são nomeadas. Há o marujo de A vaca, o homem de Uma casa; às vezes, mesmo esta indicação desaparece: Os leões, As ursas, O dia em que matamos James Cagney apresentam a ação de grupos, coletivizando a personagem e anulando sua individualidade. Quando esta reaparece, é para identificar homens que já são mitos o Capitão Marvel, em Shazam, ou Marx, em O velho Marx — que tudo fazem para renunciar a esta mitificação e se dissolveram no anonimato e na mediocridade.
O insólito, por seu turno, instala-se com força total nos relatos, aproximando os ao fantástico que, no início dos anos 1970, terá cadeira cativa na ficção brasileira. No entanto, o insólito agora se associa a uma marca apenas entrevista em Pequena história de um cadáver: ela resulta do refinamento da crueldade humana. Esse pode advir, de um lado, do aperfeiçoamento tecnológico, como mostram Os leões e Cão, nos quais está em jogo o extermínio do outro, percebido e avaliado como o antagonista a ser aniquilado. Contudo, pode advir também do afloramento de forças primitivas e incontroladas do ser humano, como ocorre cm Canibal, em que Angelina é obrigada a comer as próprias entranhas para sobreviver, enquanto Bárbara engorda com os alimentos que não divide com a amiga, Ou em Torneio de pesca, em que o candidato mais habilitado a vencer o concurso é expulso do campeonato e tem seus membros amputados.
São contos que se revelam parábolas da sociedade contemporânea. A concorrência — norma imposta pelo capitalismo — só é vencida pela eliminação sumária dos competidores, o que provoca a violência ilimitada, provenha ela de dentro ou ele feira do indivíduo.
Por essa razão, a temática da crueldade e da violência atravessa a trajetória do Scliar contista. Em O mistério dos hippies desaparecidos, ele denuncia a origem social do ato opressivo, que ajuda aumentar as rendas do ‘senhor de cinza”, explorador dos artesãos. Todavia, a natureza humana também é responsável pela ação predatória sobre as pessoas e o meio, quando da vazão ao inconsciente incontido e mobiliza instintos primitivos e destruidores.
Os vários contos que enfocam o erotismo e o sexo desdobram a concepção antes descrita, mostrando um relacionamento em que as agressões e o desejo de dominação do outro se superpõem ao amor, à amizade, ao respeito e ao equilíbrio. Aranha ou O anão no televisor também exemplificam as relações desiguais entre companheiros, bem como Os amores de um ventríloquo, que se vale do dualismo inerente à profissão do protagonista para expor seus conflitos e frustrações sentimentais. Não por acaso muitas das histórias transmitem o tema por meio da animalização de um dos parceiros sexuais: em A vaca ou A galinha dos ovos de ouro — perfil enquanto moribunda, a redução da amante à condição de bicho doméstico não apenas mostra o caráter doentio da relação erótica; simboliza também o rebaixamento de um dos amantes pela dominação e exploração do outro.
Histórias de médico em formação e, depois, O Carnaval dos animais apresentam, de modo tênue, uma vertente posteriormente ampliada pelo escritor, em especial nos romances, mas também nos contos: a do judaísmo.
Bicho e Ao mar, de O Carnaval dos animais, são histórias em que transparecem os temas da migração judaica e do confronto cultural. Este último é mais evidente em A balada do falso Messias, em que o contraste entre a cultura tradicional — de natureza mística — e a necessidade de se adequar às regras do novo mundo motiva o enredo. Shabtai Zvi é o visionário que, à frente dos imigrantes, quer mantê-los ligados aos valores trazidos da Europa e do passado; mas ele é igualmente o executivo, bem-sucedido quando se transfere do campo para a cidade, que se consola em ocasiões especiais, transformando o vinho em água, isto é, invertendo o ato sobrenatural a que apontava sua eventual natureza divina e sagrada.
Se nos dois primeiros livros Scliar se sujeitou à sequência tradicional de conto, desde O Carnaval dos animais, o escritor estabiliza sua forma predileta o relato curto, apoiado nem núcleo mínimo de personagens e acontecimentos. É o miniconto, de que Scliar é mestre e que retorna com grande assiduidade em Os mistérios de Porto Alegre, cujos textos dificilmente ultrapassam uma página impressa, Histórias da terra trêmula e A balada do falso Messias. Mas é nesse livro que Scliar apresenta um de seus raros contos longos, alinhado ao gênero desde o título: Os contistas.
Essa é uma narrativa rara também por outra razão: é nela que literatura e escritores são tematizados, e de modo humorístico, a começar pelo esforço, por parte do narrador, de arrolamento dos inúmeros contistas que conhece, isso na mesma época em que o crítico Wilson Martins afirmava ser o conto o equivalente do soneto no período anterior do Modernismo, tal a proliferação então de adeptos do gênero.
Todavia, ao produzir uma narrativa mais longa, Scliar continua fiel à sua técnica: o conto maior resulta da reunião de grande número de pequenos contos, aludidos apenas pelo narrador, ao identificar cada um dos autores e suas peculiaridades artísticas.
Se o conto de Moacyr Scliar se caracteriza pela ausência de identificação dos heróis, existem unicamente duas situações em que ele subverte o anonimato nas histórias de temática judaica e em Os contistas. Judeus e escritores têm nomes e hábitos particulares que os diferenciam perante os outros, permitindo-lhes a recuperação da individualidade, aparentemente cercada pelas transformações da sociedade contemporânea.
A aproximação não é fortuita, e Moacyr Scliar faz questão de afirma-la em palestras e entrevistas. No entanto, o notável é que a concretize nos textos ficcionais, com o que lhes confere coerência e unidade.
Ao mesmo tempo, porque o fazer literário recupera a identidade individual — de escritores e leitores – a literatura incorpora uma dimensão emancipadora; ou, ao menos, representa a inversão da (e saída para a) realidade massificada e desumana denunciada em vários momentos dos contos.
Apresentando-se como arte que reabilita o indivíduo massacrado pela sociedade e resgata sua humanidade, o conto de Scliar acaba também por assumir sua própria individualidade e significação. É o que o faz original e único, coerente com as características introduzidas desde o início da trajetória literária do escritor e confirmadas ao longo de seu percurso no tempo.
OS LEÕES
Hoje não, mas há anos os leões foram perigo. Milhares, milhões deles corriam pela África, fazendo estremecer a selva com seus rugidos. Houve receio de que eles chegassem a invadir a Europa e a América. Wright, Friedman, Mason e outros lançaram sérias advertências a respeito. Foi decidido então exterminar os temíveis felinos. O que foi feito da maneira que se segue.
A grande massa deles, concentrada perto do Lago Tchad, foi destruída com uma única bomba atômica de média potência, lançada de um bombardeiro, num dia de verão. Quando o característico cogumelo se dissipou, constatou-se, por fotografias, que o núcleo da massa leonina tinha simplesmente se desintegrado. Rodeava-o um setor de cerca de dois quilômetros, composto de postas de carne, pedaços de ossos e jubas sanguinolentas. Na periferia, leões agonizantes.
A operação foi classificada de “satisfatória” pelas autoridades encarregadas. No entanto, como sempre acontece em empreendimentos desta envergadura, os problemas residuais constituíram-se, por sua vez, em fonte de preocupação. Tal foi o caso dos leões radioativos, que tendo escapado à explosão, vagueavam pela selva. É verdade que cerca de vinte por cento deles foram mortos pelos zulus nas duas semanas que se seguiram à explosão. Mas a proporção de baixas entre os nativos (dois para cada leão) desencorajou mesmo os peritos mais otimistas.
Tornou-se necessário recorrer a métodos mais elaborados. Para tal criou-se um laboratório de treinamento de gazelas, cujo objetivo primário era liberar os animais do instinto de conservação. Seria fastidioso entrar nos detalhes desse trabalho, aliás muito elegante; é suficiente dizer que o método utilizado foi o de Walsh e colaboradores, uma espécie de brain-wash adaptado a animais. Conseguido um número apreciável de gazelas automatizadas. foi ministrada às mesmas uma forte dose de um tóxico de ação lenta. As gazelas procuraram os leões, deixaram-se matar e comer; as feras, ingerindo a carne envenenada, vieram a ter morte suave em poucos dias.
A solução parecia ideal; mas havia uma raça de leões (poucos, felizmente) resistente a esse e a outros poderosos venenos. A tarefa de matá-los foi entregue a caçadores equipados com armamento sofisticado e ultrassecreto. Desta vez, sobrou apenas um exemplar, uma fêmea que foi capturada e esquartejada perto de Brazzaville. Descobriu-se no útero da leoa um feto viável; pouco radioativo, o animalzinho foi criado cm estufa. Visava-se, com isso, a preservação da fauna exótica,
Mais tarde o leãozinho foi levado para o Zoo de Londres onde, apesar de toda a vigilância, foi assassinado por um fanático. A morte da pequena fera foi saudada com entusiasmo por amplas camadas da população. “Os leões estão mortos!” — gritava um soldado embriagado. — “Agora seremos felizes!”
No dia seguinte começou a guerra da Coreia.
CANIBAL
Em 1950, duas moças sobrevoaram os desolados altiplanos da Bolívia. O avião, um Piper, era pilotado por Bárbara; bela mulher, alta e loira, casada com um rico fazendeiro de Mato Grosso. Sua companheira, Angelina, apresentava-se como uma criatura esguia e escura, de grandes olhos assustados. As duas eram irmãs de criação.
O sol declinava no horizonte, quando o avião leve uma pane. Manobrando desesperadamente, Bárbara conseguiu fazer uma aterrissagem forçada num platô. O avião, porém, ficou completamente destruído, e as duas mulheres encontraram-se, completamente sós, a milhares de quilômetros da vila mais próxima.
Felizmente (e talvez prevendo esta eventualidade), Bárbara trazia consigo um grande baú, contendo os mais diversos víveres: rum Bacardi, anchovas, castanhas-do-pará, caviar do Mar Negro, morangos, rins grelhados, compota de abacaxi, queijo de minas, vidros de vitaminas. Esta mala estava intacta.
Na manha seguinte, Angelina teve fome. Pediu a Bárbara que lhe fornecesse um pouco de comida. Bárbara fez-lhe ver que não podia concordar; os víveres pertenciam a ela, Bárbara, e não a Angelina. Resignada, Angelina afastou-se, à procura de frutos ou raízes. Nada encontrou; a região era completamente árida. Assim, naquele dia ela nada comeu.
Nem nos três dias subsequentes. Bárbara, ao contrário, engordava a olhos vistos, talvez pela inatividade, uma vez que contentava-se em ficar deitada, comendo e esperando que o socorro aparecesse. Angelina, pelo contrário, caminhava de um lado para outro, chorando e lamentando-se, o que só contribuía para aumentar suas necessidades calóricas.
No quarto dia, enquanto Bárbara almoçava, Angelina aproximou-se dela, com uma faca na mão. Curiosa, Bárbara parou de mastigar a coxinha de galinha, e ficou observando a outra, que estava parada, completamente imóvel. De repente Angelina colocou a mão esquerda sobre uma pedra e de um golpe decepou o seu terceiro dedo. O sangue jorrou. Angelina levou a mão à boca e sugou o próprio sangue.
Como a hemorragia não cessasse, Bárbara fez um torniquete e aplicou-o à raiz do dedo. Em poucos minutos. o sangue parou de correr. Angelina apanhou o dedo do chão, limpou-o e devorou-o até os ossinhos. A unha, jogou-a fora, porque em criança tinham-lhe proibido roer unhas — feio vício.
Bárbara observou-a em silêncio. Quando Angelina terminou de comer, pediu-lhe uma falange; quebrou-a, e com uma lasca, palitou os dentes. Depois ficaram conversando, lembrando cenas da infância etc.
Nos dias seguintes, Angelina comeu os dedos das mãos, depois os dos pés. Seguiram-se as pernas e as coxas. Bárbara ajudava-a a preparar as refeições, aplicando torniquetes, ensinando como aproveitar o tutano dos ossos etc.
No décimo quinto dia, Angelina viu-se obrigada a abrir o ventre. O primeiro órgão que extraiu foi o fígado. Como estava com muita fome, devorou-o cru, apesar dos avisos de Bárbara, para que o fritasse primeiro. Como resultado, ao fim da refeição, continuava com fome. Pediu à Bárbara um pedaço de pão para passar no molhinho.
Bárbara negou-se a atender o pedido, relembrando as ponderações já feitas.
Depois do baço e dos ovários, Angelina passou ao intestino grosso, onde teve uma desagradável surpresa; além das fezes (achado habitual nesse órgão), encontrou, na porção terminal, um grande tumor. Bárbara observou que era por isso que a outra não vinha se sentindo bem há meses. Angelina concordou, acrescentando: “É pena que eu tenha descoberto isso só agora.” Depois, perguntou à Bárbara se faria mal comer o câncer. Bárbara aconselhou-a a jogar fora essa porção, que já estava até meio apodrecida; lembrou os preceitos higiênicos que devem ser mantidos sempre, em qualquer situação.
No vigésimo dia, Angelina expirou; e foi no dia seguinte que a equipe de salvamento chegou ao altiplano. Ao verem o cadáver semidestruído, perguntaram a Bárbara o que tinha acontecido; e a moça, visando preservar intacta a reputação da irmã, mentiu pela primeira vez em sua vida:
— Foram os índios.
Os jornais noticiaram a existência de índios antropófagos na Bolívia, o que não corresponde à realidade.
O MISTÉRIO DOS HIPPIES DESAPARECIDOS
Ide ao Mercadão da Travessa do Carmo. Que vereis? O alegre, o pitoresco, o colorido. Admirai a excelente organização: cada artesão em seu quadrado, exibindo belos trabalhos.
Mas… Nada vos chama a atenção?
Não? Neste caso, pergunto-vos; onde estão os hippies da Praça Dom Feliciano? Isso mesmo, aqueles que ficavam na frente da Santa Casa. Onde estão? Não sabeis?
O homem de cinza sabe.
O homem de cinza vinha todos os dias à Praça Dom Feliciano. Ficava muito tempo olhando os hippies, que não lhe davam maior atenção. O homem, ao contrário, parecia muito interessado neles: examinava os objetos expostos, indagava por preços, por detalhes da manufatura. E anotava tudo numa caderneta de capa preta. Um dia perguntou aos hippies onde moravam. Por aí, respondeu um rapaz. Numa comuna? — perguntou o homem. Não, não era em nenhuma comuna; na realidade, estavam ao relento. O homem então disse que eles deveriam morar juntos numa comuna. Ficaria mais fácil, mais prático, O rapaz concordou, Não estava com muita vontade de falar; contudo, acrescentou, depois de uma pausa, que o problema era encontrar o lugar para a comuna.
Não é problema, disse o homem; eu tenho uma chácara lá na Vila Nova, com uma boa casa, gramados, árvores frutíferas. Se vocês quiserem, podem ficar lá. No amor? — perguntou o rapaz.
— No amor, bicho — respondeu o homem, rindo. Só quero que vocês tomem conta da casa. Os hippies confabularam entre si e resolveram aceitar. O homem levou-os — eram doze, entre rapazes e moças — à chácara, numa camioneta Veraneio. Deixou-os lá.
Durante algum tempo não apareceu, Mas, num domingo, deu as caras. Conversou com os jovens sobre a chácara, contou histórias interessantes. Finalmente, pediu para ver o que tinham feito de artesanato. Examinou as peças atentamente e disse:
— Posso dar uma sugestão?
Eles concordaram. Como não haveriam de concordar? Mas foi assim que começou. O homem organizou-os em equipes: a equipe dos cintos, a equipe das pulseiras, a equipe das bolsas.
Ensinou-os a trabalhar pelo sistema da linha de montagem; racionalizou cada tarefa, cada atividade.
Disciplinou a vida deles, também. Centralizou todo o consumo de tóxicos. Fornecia drogas mediante vales, resgatados ao fim do mês, conforme a produção. Permitiu que se vestissem como desejavam, mas era rígido na escala de trabalho. Seis dias por semana, folgas às quartas — nos domingos tinham de trabalhar. Nestes dias, o homem de cinza admitia visitantes na chácara, mediante o pagamento de ingressos. Um guia especialmente treinado acompanhava-os, explicando todos os detalhes acerca dos hippies, estes seres curiosos.
O homem de cinza já era muito rico, mas agora está multimilionário. É que organizou uma firma, e exporta para os Estados Unidos e para o Mercado Comum Europeu cintos, pulseiras e bolsas.
Parece que, para esses artigos, não há sobretaxa de exportações. Escreveu um livro — Minha Vida Entre os Hippies — que tem se constituído em autêntico êxito de livraria; uma adaptação para a televisão, sob forma de novela, está quase pronta. E quem ouviu a trilha sonora, garante que é um estouro.
Tem apenas um temor, este homem. É que um dos hippies, de uma hora para outra, cortou o cabelo, passou a tomar banho — e usa agora um decente terno cinza. Por enquanto ainda não se manifestou; mas trata-se — o homem de cinza está convencido disto — de um autêntico contestador.
CONTISTAS
(…)
O contista Almerindo exigiu que seu livro fosse impresso em letras minúsculas e tão diminutas quanto possível. Vai ficar meio difícil para ler, avisou o dono da gráfica. Não importa, disse o contista Almerindo, eu estou pagando, faço o livro como quero. Em contraste o contista Cabrão tinha um capítulo inteiro onde cada palavra ocupava uma página.
O contista Almir perdeu a última página de seu conto A Glória. Durante dois dias revirou a casa. De repente notou que o conto ficava melhor daquela maneira e cessou a busca.
Já escrevi um conto em dois minutos, mas uma vez levei seis meses para escrever um conto. Numa noite escrevi oito contos. Numa só gaveta contei vinte e sete contos, debaixo de minha cama encontrei, numa pasta, dezesseis contos cuja existência eu esquecera, No momento estava escrevendo um conto chamado Os Contistas e procurando uma moça chamada Marisa, ou uísque. O uísque apareceu primeiro, trazido por um garçom mal-encarado.
O sonho do contista Reinaldo era um conto que se escrevesse a si mesmo: dado o tema, ou, no máximo, a primeira palavra, as que se seguissem seriam inevitáveis. O contista imaginava uma caneta sobre um papel, fios conectados a uma máquina, um dispositivo de feedback para corrigir os eventuais desvios, de estilo ou outros. O contista Damasceno propunha um conto de múltipla escolha, escrito na segunda pessoa do singular: “Era uma tarde de verão. Tu estavas: a) em tua casa; b) no cinema; c) numa livraria. Se (a) é verdadeiro…”. O contista Auro pensava em impregnar as páginas de seu livro com substâncias alucinógenas. Lambendo o papel, o leitor teria visões erráticas.
Vi a Marisa. estava sentada num carro, diante da livraria. A porta do veículo aberta, eu podia ver as pernas dela. Vai ser boa assim no inferno, gemi. Estava me faltando um carro. Tivesse eu um automóvel, Marisa estaria sentada a meu lado, minha mão deslizando constantemente da alavanca de câmbio para a coxa dela. Mas não tinha carro; movia-me a pé entre os contistas.
(…)