– JORGE DE LIMA – MELHORES POEMAS
SEGUNDA FASE MODERNISTA – 1930 a 1945 – POESIA
A produção em verso da Segunda Fase equilibrou as conquistas da fase anterior, como o verso livre e a oralidade da linguagem, com as formas tradicionais da poesia, representando, assim, amadurecimento dos poetas, que adequaram as formas e a linguagem à abordagem temática, ora prosaica ora solene.
Nesta fase, a poesia seguiu duas vertentes, uma de reação espiritualista, que, no Brasil, girou em torno da revista carioca Festa, liderada por Augusto Frederico Schmidt. A revista, que revelou Vinícius de Moraes, Cecília Meireles, Jorge de Lima e Murilo Mendes, foi a expressão do grupo que, diante do mundo em crise, buscou saída na religiosidade, retomando o Simbolismo transcendental.
Outra linha da produção em verso e que conseguiu efeito mais impactante foi a poesia política, de preocupação social, principalmente na obra de Carlos Drummond de Andrade e na segunda fase de Vinícius de Moraes.
– A Segunda Fase Modernista representa as produções artísticas entre 1930 e 1945 com acentuada preocupação com os dramas individuais e sociais.
– O período vive acentuado conflito em função da crise econômica provocada pela quebra de 1929 e pelos regimes totalitários na Europa e Brasil.
– As produções literárias do período buscam o equilíbrio entre as conquistas modernistas da Primeira Fase e a retomada de elementos do passado.
– A poesia mantém o verso livre, a oralidade, mas resgata as formas tradicionais e tematiza os conflitos interpessoais e intersociais motivados pelo clima sombrio da época, como se observa na obra de Carlos Drummond de Andrade.
– A prosa volta-se às questões universais como a opressão e a miséria humana, atingindo dimensão mais abrangente, por isso o predomínio do romance, mais adequado aos painéis sociais construídos no período. Destaca-se no período o Regionalismo Nordestino.
– JORGE DE LIMA:
Jorge Mateus de Lima, alagoano de União dos Palmares, 23 de abril de 1893, filho de rico comerciante, formado em Medicina, médico e político em Maceió, onde iniciou a carreira de escritor, por influência do Parnasianismo, mais tarde aproximando-se do Modernismo iconoclasta da Semana de Arte Moderna. Nos anos 1920, sua poesia marcou-se pelo prosaísmo, pela incorporação da cultura popular e do elemento afro-brasileiro. Na década de 1930, mudou-se para o Rio de Janeiro, envolvendo-se com o grupo espiritualista que editava a revista Festa. Conheceu então Murilo Mendes, de quem se tornou amigo e com quem publicou o livro Tempo e Eternidade, marco na obra de ambos. A maior e mais importante parte de sua obra vem a partira daí, de temática surrealista, religiosa, e que envolve também romance e pintura. Faleceu no Rio de Janeiro em 15 de novembro de 1953.
XIV Alexandrinos (1914)
O Mundo do Menino Impossível (1925)
Poemas (1927)
Novos Poemas (1929)
Tempo e Eternidade (1935)
A Túnica Inconsútil (1938)
Anunciação e encontro de Mira-Celi (1943)
Poemas Negros (1947)
Livro de Sonetos (1949)
Obra Poética (1950)
Invenção de Orfeu (1952)
O mineiro Murilo Mendes e o alagoano Jorge de Lima, amigos e parceiros poéticos, deixaram uma poesia singular em nossa Literatura. Murilo Mendes iniciou a produção sobre influência das conquistas da Semana de Arte Moderna, o poema piada, a paródia, o nacionalismo crítico. Jorge de Lima tem o primeiro livro marcado pelo formalismo parnasiano, mas, na década de 1920, aderiu ao prosaísmo modernista, com uma singularidade, uma série de poemas abordando o cotidiano e a cultura dos afrodescendentes, além de forte vocação socialista, mas depois aderiram à poesia religiosa, espiritualista e com proximidade com o Surrealismo. Inventiva, imagética, barroca, muitas vezes hermética, a obra dos dois representa o que de mais complexo tem a poesia modernista no Brasil.
– JORGE DE LIMA: OBRA
– SONETOS:
ZUMBI
Em meu torrão natal — Imperatriz —,
nas serras da Barriga e da Juçara,
um homem negro, muito negro, quis
mostrar ao mundo que tinha alma clara.
E tem o sonho que Platão sonhara: —
que um sonho nobre não possui matiz.
(O sol d’Egina é o mesmo sol do Saara,
da Senegâmbia, de qualquer país).
Em mil seiscentos e noventa e sete,
galgam o topo da montanha a pique,
os homens brancos de Caetano e Castro.
E o negro herói que não se curva e inflete,
faz-se em pedaços para que não fique
com os homens brancos, o seu negro rastro…
– XIV ALEXANDRINOS:
O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
Lá vem o acendedor de lampiões de rua!
Este mesmo que vem, infatigavelmente,
Parodiar o Sol e associar-se à lua
Quando a sobra da noite enegrece o poente.
Um, dois, três lampiões, acende e continua
Outros mais a acender imperturbavelmente,
À medida que a noite, aos poucos, se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente.
Triste ironia atroz que o senso humano irrita:
Ele, que doira a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.
Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religiões, amor, felicidade
Como este acendedor de lampiões de rua!
– POEMAS:
O mundo do menino impossível
Fim da tarde, boquinha da noite
com as primeiras estrelas
e os derradeiros sinos.
Entre as estrelas e lá detrás da igreja
surge a lua cheia
para chorar com os poetas.
E vão dormir as duas coisas novas desse mundo:
o sol e os meninos.
Mas ainda vela
o menino impossível
aí do lado
enquanto todas as crianças mansas
dormem
acalentadas
por Mãe-negra Noite.
O menino impossível
que destruiu
os brinquedos perfeitos
que os vovós lhe deram:
o urso de Nürnberg,
o velho barbado jagoeslavo,
as poupées de Paris aux
cheveux crêpes,
o carrinho português
feito de folha-de-flandres,
a caixa de música checoeslovaca,
o polichinelo italiano
made in England,
o trem de ferro de U. S. A.
e o macaco brasileiro
de Buenos Aires
moviendo da cola y la cabeza.
O menino impossível
que destruiu até
os soldados de chumbo de Moscou
e furou os olhos de um Papai Noel,
brinca com sabugos de milho,
caixas vazias,
tacos de pau,
pedrinhas brancas do rio…
“Faz de conta que os sabugos
são bois…”
“Faz de conta…”
“Faz de conta…”
E os sabugos de milho
mugem como bois de verdade…
e os tacos que deveriam ser
soldadinhos de chumbo são
cangaceiros de chapéus de couro…
E as pedrinhas balem!
Coitadinhas das ovelhas mansas
longe das mães
presas nos currais de papelão!
É boquinha da noite
no mundo que o menino impossível
povoou sozinho!
A mamãe cochila.
O papai cabeceia.
O relógio badala.
E vem descendo
uma noite encantada
da lâmpada que expira
lentamente
na parede da sala…
O menino pousa a testa
e sonha dentro da noite quieta
da lâmpada apagada
com o mundo maravilhoso
que ele tirou do nada…
Chô! Chô! Pavão!
Sai de cima do telhado
Deixa o menino dormir
Seu soninho sossegado!
– NOVOS POEMAS:
Essa negra fulô
Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
— Vai forrar a minha cama
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!
Essa negra Fulô!
Essa negrinha Fulô!
ficou logo pra mucama
pra vigiar a Sinhá,
pra engomar pro Sinhô!
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!
Essa negra Fulô!
“Era um dia uma princesa
que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
Entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco”.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
“minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou”.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá
Chamando a negra Fulô!)
Cadê meu frasco de cheiro
Que teu Sinhô me mandou?
— Ah! Foi você que roubou!
Ah! Foi você que roubou!
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa,
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô).
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê meu lenço de rendas,
Cadê meu cinto, meu broche,
Cadê o meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou!
Ah! foi você que roubou!
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dêle pulou
nuinha a negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê, cadê teu Sinhô
que Nosso Senhor me mandou?
Ah! Foi você que roubou,
foi você, negra fulô?
Essa negra Fulô!
– POEMAS ESCOLHIDOS:
Mulher proletária
Mulher proletária — única fábrica
que o operário tem, (fabrica filhos)
tu
na tua superprodução de máquina humana
forneces anjos para o Senhor Jesus,
forneces braços para o senhor burguês.
Mulher proletária,
o operário, teu proprietário
há de ver, há de ver:
a tua produção,
a tua superprodução,
ao contrário das máquinas burguesas
salvar o teu proprietário.
– POEMAS NEGROS:
História
Era princesa.
Um libata a adquiriu por um caco de espelho. (libata = senzala)
Veio encangada para o litoral,
arrastada pelos comboieiros
Peça muito boa: não faltava um dente
e era mais bonita que qualquer inglesa.
No tombadilho o capitão deflorou-a.
Em nagô elevou a voz para Oxalá.
Pôs-se a coçar-se porque ele não ouviu.
Navio negreiro? não; navio tumbeiro.
Depois foi ferrada com uma âncora nas ancas,
depois foi possuída pelos marinheiros,
depois passou pela alfândega,
depois saiu do Valongo, (vila portuguesa)
entrou no amor do feitor,
apaixonou o Sinhô,
enciumou a Sinhá,
apanhou, apanhou, apanhou.
Fugiu para o mato.
Capitão do campo a levou.
Pegou-se com os orixás:
fez bobó de inhame
para Sinhô comer,
fez aluá para ele beber;
fez mandinga para o Sinhô a amar.
A Sinhá mandou arrebentar-lhe os dentes:
Fute, Cafute, Pé-de-pato, Não-sei-que-diga,
avança na branca e me vinga.
Exu escangalha ela, amofina ela,
amuxila ela que eu não tenho defesa de homem, (arruina)
sou só uma mulher perdida neste mundão.
Neste mundão.
Louvado seja Oxalá.
Para sempre seja louvado.
– TEMPO E ETERNIDADE:
Restauremos a poesia em Cristo.
A Ismael Neri na Eternidade
Distribuição da Poesia
Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Escutai, meus irmãos: poesia tirei de tudo
para oferecer ao Senhor.
Não tirei ouro da terra
nem sangue de meus irmãos.
Estalajadeiros não me incomodeis.
Bufarinheiros e banqueiros
sei fabricar distâncias
para vos recuar.
A vida está malograda,
creio nas mágicas de Deus.
Os galos não cantam,
a manhã não raiou.
Vi os navios irem e voltarem.
Vi os infelizes irem e voltarem.
Vi homens obesos dentro do fogo.
Vi ziguezagues na escuridão.
Capitão-mor, onde é o Congo?
Onde é a Ilha de São Brandão?
Capitão-mor que noite escura!
Uivam molossos na escuridão.
Ó indesejáveis, qual o país,
qual o país que desejais?
Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Só tenho poesia para vos dar.
Abancai-vos, meus irmãos.
– A TÚNICA INCONSÚTIL
O Grande Desastre Aéreo de Ontem
Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o paraquedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranquila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol.
Poema do Cristão
Porque o sangue de Cristo
jorrou sobre os meus olhos,
a minha visão é universal
e tem dimensões que ninguém sabe.
Os milênios passados e os futuros
não me aturdem porque nasço e nascerei,
porque sou uno com todas as criaturas,
com todos os seres, com todas as coisas,
que eu decomponho e absorvo com os sentidos,
e compreendo com a inteligência
transfigurada em Cristo.
Tenho os movimentos alargados.
Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria;
sou velhíssimo e apenas nasci ontem,
estou molhado dos limos primitivos,
e ao mesmo tempo ressoo as trombetas finais,
compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os signos,
tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas.
(…)
E, sendo a loucura de Deus, sou a razão das coisas, a ordem e a medida;
sou a balança, a criação, a obediência;
sou o arrependimento, sou a humildade;
sou o autor da paixão e morte de Jesus;
sou a culpa de tudo.
Nada sou.
Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordiam tuam!
– ANUNCIAÇÃO E ENCONTRO DE MIRA CELI
1
O inesperado ser começou a desenrolar as suas faixas em que estava escrita a história da criação passada e futura.
Retirou a sua imensa cabeça de dentro da torre, sob o estrondo das muralhas desabadas com o seu gesto.
A estreita porta abriu-se reverente para ele passar.
O pátio interior espraiou-se como um lago, e as colunas eternas que sustentavam as abóbadas substituíram os seus braços e as suas pernas.
Entretanto, ele continuava incluso na eternidade. Nos blocos retangulares de suas órbitas estavam encerradas inúmeras gerações.
Era tão velho que morava dentro da morte.
Era tão jovem que inscrevera no seu peito de pedra o nome de várias mulheres.
Dentro dos aquedutos que irrigavam os jardins suspensos em suas frentes haviam navegado muitos povos experientes.
Acharam a sua carne tão áspera como a sua solidão.
(…)
Era preciso ir à eternidade: ele já se encontrava nela.
Que nome mais antigo que o seu e da musa saída de si?
O horror ao espaço e à fragmentação obrigou-o a encher a planície de colunas com as insígnias de seus amigos e de operários que com ele trabalhavam.
Olhai atentamente os espelhos, que os vereis lá dentro.
E se vedes guerras, são sempre cenas bélicas contra grifos vigilantes ou sonâmbulos.
Entretanto, aparecem outros temas mais determinados: são as faces do Pai sob os mais vários signos; mas todas estas faces são uma, sob distribuição tripartite.
O inesperado ser luta pelos seus irmãos acossados e ama a magnitude do perigo.
As suas flechas já atravessam os corações superpostos de um pelotão de demônios.
E se nessa luta ele se declara morto, é que a morte lhe dá maior panorama da vida.
Ego dormivi, et soporatus sum: et exsurrexi, quia Dominus suscepit me. Illumina oculos meos, me unquam obdormiam in morte; nequando dicat inimicus meus: Prevalui adversus eum.
(Eu me deitei e dormi; e eu levantei, porque o Senhor me protegeu. Ilumina meus olhos, que eu nunca possa adormecer na morte; para que em nenhum momento o meu inimigo não diga: Eu prevaleci contra ele.)
2
Tu és, ó Mira-Celi, a repercutida e o laitmotivo
que aparece ao longo de meu poema.
Nele estás construída à semelhança de um imenso órgão
movimentado pelo meu espírito.
Cresces nele paralelamente a teu desenvolvimento físico,
mas incognitamente, como uma órfã dentro da multidão.
Às vezes, quando dobras uma página, perguntas: – “Sou eu?”
Mas, olhando depois a paisagem mudar tanto, no espaço de um segundo,
encontras os teus membros na nudez de uma frase.
Nunca te libertarás deste parque em que nos encerramos,
fingindo dois desaparecidos,
e em que nos nutrimos um do outro contra as leis naturais.
Outras vezes te encolhes em mim, ó minha pequena maré;
e basta que eu abra as pálpebras e a minha memória te encontre,
para te recompores imediatamente
em minha maior dimensão.
(…)
Anunciação e Encontro de Mira-Celi é considerado um livro singular em toda a literatura brasileira, isto se dá, muito provavelmente, pela mistura da poesia com a prosa poética constante no livro, por conter uma gama enorme de imagens complexas, por se relacionar com o misticismo religioso e com a visão mítica do mundo. Mistura que torna o poema um mistério. Hermético até mesmo para seu criador, que perguntado por uma professora americana sobre o sentido de Mira-Celi, prefere dizer:
Não procuremos exegeses a muitas respostas de Mira-Celi, pois é tida como sonâmbula, e pode, devido a qualquer impertinência, perder-se de todo, embora, reapareça inexplicavelmente em toadas as solidões ou em quase todos os delírios da febre. Então ide devagar, pé ante pé, porque não estais só, e se conseguirdes galgar esta escadaria que começa sobre vossa cabeça, alcançareis algumas noções, qualquer certeza, um encontro talvez. Pode toda esta mágica se romper, entretanto, como uma bolha; circundai cauteloso, ficai perplexo para que os últimos tetos não desabem sobre vós.
Mira-Celi significa a inspiração oferecida ao poeta – é pela inspiração dada pela musa e pela graça divina que o poeta cria –, sem ela o poema não existiria. No fragmento do Poema 5, vemos:
Sobre o meu ombro, ditas-me tuas palavras ocultas,
enches minhas vigílias,
sinto-te docemente respirando
nos objetos familiares do meu quarto,
ouço em torno de mim teu harmonioso passo;
vejo-te debruçada sobre a cadeira em que escrevo;
certa vez, minha mão estacou ao gravar uma blasfêmia;
foi tua mão breve que susteve esta pata do demônio
Vista-me e assiste-me de teu imenso domínio
teu furtivo olhar com que enches meus silêncios.
Por tua doce vontade, os meus pulsos são harpas
É com esses recursos, principalmente vinculados ao onirismo, que a imagem na poética moderna, e especialmente a surrealista, vai se apresentar de forma renovada. Comumente, na poética tradicional, a imagem tem como característico de sua construção a similitude entre seus termos de comparação. Na imagem surrealista, de forma contrária, sua formação (criação) se dá através da dessemelhança, ou seja, através da aproximação de duas realidades distantes. Desse modo, ao construir suas imagens os artistas modernos transgredem a ordem natural das comparações, provocando um choque intenso na sua linguagem – o que nos leva a percorrer os caminhos do sonho e da imaginação.
Anunciação e encontro de Mira-Celi intensifica e evidencia a influência do surrealismo na poética de Jorge de Lima, como também é flagrante à preocupação mítica, religiosa e seus elementos litúrgicos no poema. Nesse sentido, o sonho, como recurso à criação poética, será valorizado de maneira a dar acesso ao inconsciente e aos mistérios do mundo; o poético e o sagrado caminharão juntos. Será por meio desses recursos, de maneira cada vez mais adensada (inclusive com a presença marcante da musa Mira Celi), que Jorge de Lima comporá seus livros posteriores: Livro de Sonetos e, sua obra máxima, Invenção de Orfeu.
– LIVRO DE SONETOS:
Avistei-o através da treva em volta,
rumo ao longínquo e ao próximo igualmente
com seu galope e sua espada, e a escolta
de cabelo incendiado, dele rente.
Tudo foi hoje. O líquen cobre a mente,
e o pórtico vedado ante a revolta.
A corrosão dos olhos inda sente
o clamor retumbando à última volta.
Sagitários de flechas interiores
urge dizer os nomes luminares:
Lusbel, Lusbem, Lussom, Lusfer, Lusguia.
Errante comunhão de encantadores
possuem filtros, andam pelos ares
fazem das aflições sua alegria.
Era louco e era poeta o sepultado.
Dei-lhe a rosa de cinzas: tinha tido
pai no Nordeste e avô marão nevado.
O novelo da avó em fio comprido
ligado a outros avós. De monte nado,
molhado de dois rios, foragido
de relicário em ouro profanado.
Tudo em luso e Nordeste havia sido.
Que roteiro fiel sôbolos oceanos,
que outra cosmoramia mais gajeira!
Votado a D. Dinis foi trovador,
escreveu cancioneiros transmontanos
casou-se com uma ondina que era freira,
certo é meu duplo; oferto-lhe uma flor.
– INVENÇÃO DE ORFEU
Invenção de Orfeu (1952) é um dos grandes poemas da língua portuguesa e testamento literário de Jorge de Lima. Retomando o antigo mito de Orfeu para meditar sobre a criação artística, o poema está repleto de imagens poderosas e estranhas, em versos de musicalidade única que dialogam com a lírica de Camões. Invenção de Orfeu é inquestionavelmente obra de grande fôlego na poesia nacional contemporânea. Poema em dez cantos, compostos de metros variados, descreve uma viagem, como a de Dante na Divina Comédia, ao Inferno e ao Paraíso — mas une outras epopeias na sua composição, como Os Lusíadas, de Camões, além de elementos da Bíblia e da sociedade brasileira; tudo alinhavado pela presença de Orfeu, herói mitológico que encantava deuses e mortais com sua lira.
Por isso, essa “biografia épica”, como explicita o autor no subtítulo, também é definida por alguns por meio de uma contradição: “epopeia lírica” (a epopeia clássica constituindo a descrição de matéria objetiva, enquanto a lírica deriva da subjetividade). Manuel Bandeira, observando que se trata de um poema “de técnicas e faturas extremamente variadas”, afirma que “seu sentido profundo ainda não foi devidamente esclarecido pela crítica e talvez não o seja nunca, pois é evidente haver nele grande carga de subconsciente a par de certas vivências puramente verbais.
Como quer que seja, é obra poderosa, em que deparamos com fragmentos de alta beleza, que são em si pequenos poemas completos. Um exemplo:
– Invenção de Orfeu – Canto I
I
Um barão assinalado
sem brasão, sem gume e fama
cumpre apenas o seu fado:
amar, louvar sua dama,
dia e noite navegar,
que é de aquém e de além-mar
a ilha que busca e amor que ama.
(…)
II
A ilha ninguém achou
porque todos o sabíamos.
Mesmo nos olhos havia
uma clara geografia.
(…)
Afinal: ilha de praias.
Quereis outros achamentos
além dessas ventanias
tão tristes, tão alegrias?
XV
A garupa da vaca era palustre e bela,
uma penugem havia em seu queixo formoso;
e na fronte lunada onde ardia uma estrela
pairava um pensamento em constante repouso.
Esta a imagem da vaca, a mais pura e singela
que do fundo do sonho eu às vezes esposo
e confunde-se à noite à outra imagem daquela
que ama me amamentou e jaz no último pouso.
Escuto-lhe o mugido, era o meu acalanto,
e seu olhar tão doce inda sinto no meu:
o seio e o ubre natais irrigam-me em seus veios.
Confundo-os nessa ganga informe que é meu canto:
semblante e leite, a vaca e a mulher que me deu
o leite e a suavidade a manar de dois seios.
XVI
Desse leite profundo emergido do sonho
coagulou-se essa ilha e essa nuvem e esse rio
e essa sombra bulindo e esse reino e esse pranto
e essa dança contínua amortalhada e pia.
Hoje brota uma flor, amanhã fonte oculta,
e depois de amanhã, a memória sepulta
aventuras e fins, relicários e estios;
nasce a nova palavra em calendários frios.
Descobrem-se o mercúrio e a febre e a ressonância
e esses velosos pés e o pranto dessa vaca
indo e vindo e nascendo em leite e morte e infância.
E em cada passo surge um serpentário de erros
e uma face sutil que de repente estaca
os meninos, os pés, os sonhos e os bezerros.
– Canto II
Estavas linda Inês posta em repouso
mas aparentemente bela Inês;
pois de teus olhos lindos já não ouso
fitar o torvelinho que não vês,
o suceder dos rostos cobiçoso
passando sem descanso sob a tez;
que eram tudo memórias fugidias,
máscaras soto-postas que não vias.
Tu, só tu, puro amor e glória crua,
não sabes o que à face traduzias.
Estavas, linda Inês, aos olhos nua,
transparente no leito em que jazias.
Que a mente costumeira não conclua,
nem conclua da sombra que fazias,
pois, Inês em repouso é movimento,
nada em Inês é inanimado e lento.
As fontes dulçurosas desta ilha
promanam da rainha viva-morta;
o punhal que feriu é doce tília
de que fez a atra brisa santa porta,
e em cujos ramos suave porta,
e em cujos ramos suave se enrodilha,
e segredos de amor ao céu transporta.
Não há na vida amor que em vão termine,
nem vão esquecimento que o destine.
– Canto III – Poemas Relativos
I
Caída a noite
o mar se esvai,
aquele monte
desaba e cai
silentemente.
Bronzes diluídos
já não são vozes,
seres na estrada
nem são fantasmas,
aves nos ramos
inexistentes;
tranças noturnas
mais que impalpáveis,
gatos nem gatos,
nem os pés no ar,
nem os silêncios.
O sono está.
E um homem dorme.
(…)
XXVII
Contemplar o jardim além do odor
e a mulher silenciosa entre semblantes,
e refazê-los todos, todos antes
que o tempo condenado os atraiçoe.
Porque eu quero, em memória refazê-los:
flor longínqua, mulher, não pertencida,
substância inexistente, móvel vida,
intercessão de nadas e cabelos.
E meus olhos ausentes me espiando
entre as coisas caducas e fugaces
a minha intercessão em outras faces.
Orfeu, para conhecer teu espetáculo,
em que queres senhor, que eu me transforme,
ou me forme de novo, em que outro oráculo?