GUIA DE LINGUAGENS – LITERATURA BRASILEIRA
ANÁLISE DE DOM CASMURRO – MACHADO DE ASSIS
– O AUTOR:
Machado de Assis representa a realização máxima da Literatura brasileira do final do século XIX e início do XX, especificamente dentro do Realismo-Naturalismo. Considerado o principal prosador brasileiro, é tido, hoje, como um dos principais da Literatura ocidental. Veja as referências:
Confira trechos da entrevista do professor inglês John Angus Gledson, uma das maiores autoridades sobre o autor, publicada no site CONEXÃO PROFESSOR, na ocasião do centenário do autor:
Conexão Professor (CP) – Por conta da comemoração este ano do centenário da morte de Machado de Assis, qual seria o principal legado da obra machadiana para a cultura brasileira?
John Gledson – Eu diria que em duas coisas, muito ligadas – o humor, a ironia, e o ceticismo. Machado aprendeu cedo a desconfiar de tudo – “Tudo, meu amigo, tudo, menos viver como um perpétuo empulhado”, como disse já no fim da vida. A ironia é a expressão mais cabal desse ceticismo, e faz com que seu leitor tenha que desconfiar, igualmente. Esta atitude, esta posição, não é comum na literatura brasileira – pensem noutras figuras como Euclides da Cunha ou até Guimarães Rosa – e nele é muito radical. Por isso, inclusive, é que certas coisas, como a possível inocência de Capitu, passaram despercebidas ao longo de décadas. É Machado que nos está empulhando.
CP – A obra de Machado de Assis se mantém atual? O que podemos “linkar” com os dias de hoje?
John Gledson – Na verdade, acho uma pergunta de difícil resposta. Normalmente, o que se ouve são queixas sobre a “imposição” de Machado nas escolas, e para mim é bem provável que sejam queixas justificadas – os romances da maturidade talvez não sejam pasto ideal para a juventude de qualquer país, não falo só do Brasil. Por outro lado, estou consciente de que certas obras sim têm um poder mais imediato, digamos, de repercussão. Fiquei atônito, e muito contente, é claro, com as vendas de uma antologia popular de contos que fiz, e imagino que esses contos, tão saborosos, deixam-se ler por muita gente, e dão muito prazer. A que se deve isso – às situações, todas compreensíveis mesmo numa sociedade que mudou muito? Às personagens, tão humanas nas suas fraquezas e obsessões? Talvez, acima de tudo, o que cria o charme dessas obrinhas seja aquela coisa evanescente, o estilo, com suas pitadas mínimas de – repito – ironia e humor.
CP – Por que Machado de Assis não é considerado um escritor popular, e o que pode ser feito para popularizar a sua obra no Brasil? Como os professores deveriam trabalhar as obras do escritor em sala de aula?
John Gledson – Como sugeri antes, talvez fosse bom apresentar Machado pelos contos. Os romances, mesmo os dois mais populares, Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, têm suas complicações, principalmente têm narradores de quem se tem que desconfiar sempre, e embora isso seja fascinante para certos leitores, para outros constituirá um empecilho.
CP – Que livro pode ser considerado a obra-prima de Machado? Ele pode ser considerado o melhor escritor brasileiro de todos os tempos?
John Gledson – Normalmente, sem dúvida, escolheria entre Memórias póstumas e Dom Casmurro, mas um pouco por pirraça, para usar uma palavra bem machadiana, vou escolher outro – Várias histórias, publicado em 1895. Um livro que contém “A cartomante”, “Uns braços”, “A causa secreta”, “O enfermeiro”, “O diplomático”, “Conto de escola”, “Dona Paula”, e o incompáravel “Um homem célebre” (assunto de um maravilhoso ensaio de José Miguel Wisnik, “Machado maxixe”), todos tão definitivos, e tão diferentes entre si, não merece um jabutizinho?
REVISTA ÉPOCA – Edição 246 – 03/02/2003 – ENTREVISTA CONCEDIDA A LUÍS ANTÔNIO GIRON:
Harold Bloom é o crítico literário mais popular do mundo. Nasceu em Nova York em 11 de julho de1930. Formou-se em Cornell (1951) e fez Ph.D. em Yale (1955), onde dá aulas desde 1955. Odeio Harry Potter. É bruxaria barata reduzida a aventura. É prejudicial ao leitor. Não tem densidade. A escrita é horrível. Lancei a polêmica, sabendo que eu atuaria como Hamlet, que defronta com um oceano de aborrecimentos. Continuo me incomodando com os fãs do pequeno feiticeiro.
ÉPOCA – O senhor cita Fernando Pessoa entre os grandes escritores no Cânone Ocidental. Agora inclui Machado de Assis. Por que ele é gênio?
Bloom – Leio em português com certa fluência. Gosto muito de José Saramago, somos bons amigos, embora eu não concorde com a posição dele em relação à guerra contra o terrorismo. Ele é comunista, respeito as idéias dele, mas não concordo. É um bom escritor. Em poesia, a língua portuguesa legou Camões e Fernando Pessoa. Na ficção, adoro Eça de Queirós e Machado de Assis. Considero Machado o maior gênio da literatura brasileira do século XIX. Ele reúne os pré-requisitos da genialidade: exuberância, concisão e uma visão irônica ímpar do mundo. Procuro um grande poeta brasileiro vivo. Ainda não o encontrei. Conheço Carlos Drummond de Andrade e ouvi falar de Guimarães Rosa, que adoraria ler. Não sei se terei tempo.
– O ROMANCE:
Dom Casmurro constitui, com Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, a melhor realização do autor em termos de romance. Complexo, denso, enigmático; no quesito psicológico, é o mais bem realizado. Se Memórias… destaca-se na análise filosófica do comportamento humano, quer pela influência de Schopenhauer nos conceitos da felicidade humana, quer pela representação do homem medíocre, e Quincas Borba esboça o triângulo amoroso mais característico do Realismo, Dom Casmurro criou os modelos da insegurança masculina e da dissimulação da mulher mais bem acabados de nossa Literatura.
Por um lado, o romance obedece à lógica do Realismo: a visão crítica do mundo burguês, o casamento como instituição falida, a hipocrisia das relações humanas, personagens medíocres. Assim como os conflitos do livro envolvem sempre cenas banais do cotidiano, desprovidas de qualquer heroísmo, como ouvir as pessoas atrás da porta, corresponder-se com um menino leproso.
Porém, Dom Casmurro não é um romance para se ver apenas a superfície. Romance complexo, Dom Casmurro apresenta estrutura inovadora em relação ao modelo de romance criado pelo Realismo europeu, por Flaubert, que Machado conhecia. Os principais aspectos em que o livro inova são a narrativa de tempo psicológico e a abordagem dada ao adultério, o eterno enigma de Capitu. O leitor atento observará que, mais que narrar e explicar as causas de um adultério, como fizeram Flaubert, em Madame Bovary, e Eça de Queirós, em O Primo Basílio, Machado reflete o impacto do desmoronamento da vidinha burguesa em seu protagonista. Ao ver seu mundo desabar, Bentinho revela uma postura egoísta, uma mesquinharia desmedida, e, como homem medíocre que é, sem assumir para si a responsabilidade de sua derrocada.
Outro aspecto que não se observa na superfície do romance é o painel social construído pelo autor. Hábil retrato do parasitismo social do Rio de Janeiro, da Corte, do Segundo Reinado, como fizera em seus dois romances anteriores, Dom Casmurro prima pela ironia na descrição da burguesia que vivia de rendas, do agregado, do funcionário público, do clero. E o personagem que representaria o oposto do parasitismo, pois é um comerciante, logo trabalha, Escobar, é tragado pela ressaca do mar.
A seguir, a presente análise observará dois aspectos essenciais do romance: a estrutura social e econômica dos personagens que compõem o enredo e a narrativa propositalmente lenta.
– OS PERSONAGENS: A ESTRUTURA SOCIAL E ECONÔMICA:
– O narrador/protagonista:
Na velhice, Bentinho torna-se o Dom Casmurro, isolado; na infância, filho único, educou-se em uma redoma; bacharel em Direito, o caminho dos filhos da elite da época, apesar de lembrar o pai, não repetiu a sua trajetória.
Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria… (CAPÍTULO II) Minha mãe, quando eu regressei bacharel quase estalou de felicidade… — Mano Cosme, é a cara do pai, não é?… (CAPÍTULO XCIX) Como eu quisesse falar também para disfarçar o meu estado, chamei algumas palavras cá de dentro, e elas acudiram de pronto, mas de atropelo, e encheram-me a boca sem poder sair nenhuma. (CAPÍTULO XXXIV)
– O núcleo familiar de Bentinho:
Bentinho tem sua origem na oligarquia rural. O pai, fazendeiro, elege-se deputado e a família muda-se para o Rio de Janeiro. Após a morte do pai, a mãe decide-se por continuar na corte e viver de rendas, fato comum na época. Aqui o autor enfatiza o parasitismo, pela presença dos viúvos na casa, com a desculpa de companhia à viúva. E da figura do agregado, parasita social típico dessa sociedade e que se observa em outros livros, como em O Cortiço.
…meu pai ainda estava na antiga fazenda de Itaguaí… Quando meu pai foi eleito deputado e veio para o Rio de Janeiro… (CAPÍTULO V)
Minha Mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e deixou-se estar na casa de Mata-cavalos, onde vivera os dous últimos anos de casada. Era filha de uma senhora mineira, descendente de outra paulista, a família Fernandes.
Ora, pois, naquele ano da graça de 1857, D. Maria da Glória Fernandes Santiago contava quarenta e dous anos de idade. Era ainda bonita e moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da ação do tempo. (CAPÍTULO VII)
Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ela enviuvou. Já então era viúvo, como prima Justina; era a casa dos três viúvos.
A fortuna troca muita vez as mãos à natureza. Formado para as serenas funções do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escritório na antiga Rua das Violas, perto do júri, que era no extinto Aljube. Trabalhava no crime. (CAPÍTULO VI)
– O agregado e o padre:
Machado carrega de ironia essas duas figuras, observando hábitos condenáveis em ambos, como o pedantismo, a bajulação. Notar os pecados capitais do padre:
Era nosso agregado desde muitos anos… Com o tempo, adquiriu certa autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole. A roupa durava-lhe muito; ao contrário das pessoas que enxovalham depressa o vestido novo, ele trazia o velho escovado e liso, cerzido, abotoado, de uma elegância pobre e modesta. Era lido, posto que de atropelo, o bastante para divertir ao serão e à sobremesa, ou explicar algum fenômeno, falar dos efeitos do calor e do frio, dos pólos e de Robespierre. Contava muita vez uma viagem que fizera à Europa… (CAPÍTULO V)
O Padre Cabral recebera na véspera um recado do internúncio; foi ter com ele, e soube que, por decreto pontifício, acabava de ser nomeado protonotário apostólico… Era um velho magro, sereno, dotado de qualidades boas. Alguns defeitos tinha; o mais excelso deles era ser guloso, não propriamente glutão; comia pouco, mas estimava o fino e o raro…(CAPÍTULO XXXV)
– O núcleo paralelo: a família de Capitu:
Na casa ao lado, vivem Capitu, seus pais, D. Fortunata e Pádua. As casas são ligadas por uma portinhola sem tranca ou taramela. Por ela, Capitu entra na casa de Bentinho desde a infância. No início, José Dias ironiza Pádua, chamando-o de tartaruga. O pai de Capitu é funcionário público, condição e comportamento medíocre; a mãe é dona de casa e revela maior equilíbrio que o marido. Os pais não colocam restrições em relação a Bentinho, que tem livre acesso à casa de Capitu.
Pádua era empregado em repartição dependente do Ministério da Guerra. Não ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata. Demais, a casa em que morava, assobradada como a nossa, posto que menor, era propriedade dele. Comprou-a com a sorte grande que lhe saiu num meio bilhete de loteria, dez contos de réis. A primeira idéia do Pádua, quando lhe saiu o prêmio, foi comprar um cavalo do Cabo, um adereço de brilhantes para a mulher, uma sepultura perpétua de família, mandar vir da Europa alguns pássaros, etc.; mas a mulher, esta D. Fortunata que ali está à porta dos fundos da casa, em pé, falando à filha, alta, forte, cheia, como a tia, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros, a mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa, e guardar o que sobrasse para acudir às moléstias grandes. Pádua hesitou muito; afinal, teve de ceder aos conselhos de minha mãe, a quem D. Fortunata pediu auxílio. Nem foi só nessa ocasião que minha mãe lhes valeu; um dia chegou a salvar a vida ao Pádua. Escutai; a anedota é curta. (CAPÍTULO VI)
Capitu… Ainda assim, estou que aprenderia facilmente pintura, como aprendeu música mais tarde. Já então namorava o piano da nossa casa, velho traste inútil, apenas de estimação. Lia os nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das ruínas, das pessoas, das campanhas, o nome, a história, o lugar. José Dias dava-lhe essas notícias com certo orgulho de erudito. A erudição deste não avultava muito mais que a sua homeopatia de Cantagalo. Um dia. Capitu quis saber o que eram as figuras da sala de visitas. O agregado disse-lho sumariamente, demorando-se um pouco mais em César, com exclamações em latim…( CAPÍTULO XXXI)
– A burguesia produtiva: Escobar, o comerciante:
Contrapondo-se ao núcleo de Bentinho, tem iniciativa – é dele a ideia para Bentinho sair do seminário – inicia seu negócio com ajuda de D. Glória, que prefere não ser sócia. Aqui há um ponto importante a observar e que também não se encontra na leitura rasa do romance: assim como em O Cortiço, em que João Romão, o burguês emergente, associa-se à aristocracia decadente da Corte no final do romance, Escobar torna-se comerciante com o auxílio da classe improdutiva
Chamava-se Ezequiel de Sousa Escobar era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo… Era mais velho que eu três anos, filho de um advogado de Curitiba, aparentado com um comerciante do Rio de Janeiro, que servia de correspondente ao pai…( CAPÍTULO LVI) Escobar começava a negociar em café depois de haver trabalhado quatro anos em uma das primeiras casas do Rio de Janeiro. Era opinião de prima Justina que ele afagara a idéia de convidar minha mãe a segundas núpcias; mas, se tal idéia houve, cumpre não esquecer a grande diferença de idade. Talvez ele não pensasse em mais que associá-la aos seus primeiros tentamens comerciais, e de fato, a pedido meu, minha mãe adiantou-lhe alguns dinheiros, que ele lhe restituiu, logo que pôde, não sem este remoque: “D. Glória é medrosa e não tem ambição.” (CAPÍTULO XCVIII)
01- Narrativa lenta:
O Realismo, e principalmente o de Machado de Assis, opõe-se à narrativa romântica, especialmente aos romances heroicos como O Guarani, preferindo a reflexão à ação. Nas páginas de Dom Casmurro, o leitor encontrará um número menor de ações e se defrontará com a prosa reflexiva, psicológica, em que a cada ação corresponde uma reflexão sobre o impacto causado no narrador/protagonista. Machado de Assis utiliza-se de recursos que ele absorveu de seus mestres, Sterne, Maistre, Balzac, e que ele desenvolveu com maestria impar. O uso sistemático do flashback, do flash forward, da digressão, da metalinguagem, do discurso sobre o discurso, perpassam todo o livro e contribuem para a criação do enredo denso e ambíguo. A seguir, esses recursos são exemplificados:
– Flashback: analepse:
Interrupção de uma sequência cronológica narrativa pelainterpolação de eventos ocorridos anteriormente. É, portanto, uma forma de anacronia, ou seja, uma mudança de plano temporal.
Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rígido. Também se descompunha em acionados, era muita vez rápido e lépido nos movimentos, tão natural nesta como naquela maneira. Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem vontade, mas comunicativo, a tal ponto ás bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara, toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves, gravíssimo.
Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga fazenda de Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali vendendo-se por médico homeopata; levava um Manual e uma botica. Havia então um andaço de febres; José Dias curou o feitor e uma escrava, e não quis receber nenhuma remuneração. Então meu pai propôs-lhe ficar ali vivendo, com pequeno ordenado. José Dias recusou, dizendo que era justo levar a saúde à casa de sapé do pobre. (CAPÍTULO V)
No Seminário… Ah! não vou contar o seminário, nem me bastaria a isso um Capítulo. Não, senhor meu amigo; algum dia. sim, é possível que componha um abreviado do que ali vi e vivi, das pessoas que tratei, dos costumes, de todo o resto. Esta sarna de escrever, quando pega aos cinqüenta anos, não despega mais. Na mocidade é possível curar-se um homem dela; e, sem ir mais longe, aqui mesmo no seminário tive um companheiro que compôs versos, à maneira dos de Junqueira Freire, cujo livro de frade-poeta era recente. Ordenou-se anos depois encontrei-o no coro de S. Pedro e pedi-lhe que me mostrasse os versos novos.
–Que versos? perguntou meio espantado.
–Os seus. Pois não se lembra que no seminário…
–Ah! sorriu ele. (CAPÍTULO LIV)
– Flashback dentro de flashback:
Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. Uma das minhas recordações mais antigas era vê-lo montar todas as manhãs a besta que minha mãe lhe deu e que o levava ao escritório. (…)
Também não me esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na roça (donde vim com dous anos) e apesar dos costumes do tempo, eu não sabia montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em mim e escanchou-me em cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove anos), sozinho e desamparado, o chão lá embaixo, entrei a gritar desesperadamente: “Mamãe! mamãe!” Ela acudiu pálida e trêmula, cuidou que me estivessem matando, pegou-me, afagou-me, enquanto o irmão perguntava:
–Mana Glória, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa?
–Não está acostumado.
–Deve acostumar-se. Padre que seja, se for vigário na roça, é preciso que monte a cavalo; e, aqui mesmo, ainda não sendo padre, se quiser florear como os outros rapazes, e não souber, há de queixar-se de você, mana Glória.
–Pois que se queixe; tenho medo. (CAPÍTULO VI)
– Flashforward: prolepse:
Recurso narrativo através do qual se antecipa o futuro, um ato futuro: angustias e ansiedades.
Não é que Escobar ainda lá more nem sequer viva; morreu pouco depois, por um modo que hei de contar. Enquanto viveu, uma vez que estávamos tão próximos, tínhamos por assim dizer uma só casa- eu vivia na dele, ele na minha, e o pedaço de praia entre a Glória e o Flamengo era como um caminho de uso próprio e particular. Fazia-me pensar nas duas casas de Mata-cavalos, com o seu muro de permeio. (CAPÍTULO CXVII)
No melhor deles, ouvi passos precipitados na escada, a campainha soou, soaram palmas, golpes na cancela, vozes, acudiram todos, acudi eu mesmo. Era um escravo da casa de Sancha que me chamava
–Para ir lá… sinhô nadando, sinhô morrendo. (CAPÍTULO CXXI)
Tudo era matéria às curiosidades de Capitu. Caso houve, porém, no qual não sei se aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as cousas, como eu. É o que contarei no outro Capítulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o agregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manhã. D. Fortunata, que estava no quintal nem esperou que eu lhe perguntasse pela filha. (CAPÍTULO XXXII)
Assim, apanhados pela mãe, éramos dous e contrários, ela encobrindo com a palavra o que eu publicava pelo silêncio. D. Fortunata tirou-me daquela hesitação, dizendo que minha mãe me mandara chamar para a lição de latim; o Padre Cabral estava à minha espera. Era uma saída; despedi-me e enfiei pelo corredor. Andando, ouvi que a mãe censurava as maneira da filha, mas a filha não dizia nada. (CAPÍTULO XXXIV)
– Digressão:
Ação de se afastar, divagação, desvio ou distração do assunto, para outro diferente daquele de que se trata:
O destino não é só dramaturgo, é também o seu próprio contra-regra, isto é, designa a entrada dos personagens em cena, dá-lhes as cartas e outros objetos, e executa dentro os sinais correspondentes ao diálogo, uma trovoada, um carro, um tiro. Quando eu era moça representou-se aí, em não sei que teatro, um drama que acabar pelo juízo final. O principal personagem era Ahasverus, que no último quadro concluía um monólogo por esta exclamação: “Ouço a trombeta do arcanjo!” Não se ouviu trombeta nenhuma. Ahasverus, envergonhado, repetiu a palavra, agora mais alto, para advertir o contra-regra, mas ainda nada. Então caminhou para o fundo, disfarçadamente trágico, mas efetivamente com o fim de falar ao bastidor, e dizer em voz surda: “O pistão! o pistão! o pistão!” O público ouviu esta palavra e desatou a rir, até que, quando a trombeta soou deveras, e Ahasverus bradou pela terceira vez que era a do arcanjo, um gaiato da platéia corrigiu cá de baixo: “Não, senhor, é o pistão do arcanjo”
Assim se explicam a minha estada debaixo da janela de Capitu e a passagem de um cavaleiro, um dandy, como então dizíamos. Montava um belo cavalo alazão, firme na sela, rédea na mão esquerda a direita à cinta, botas de verniz, figura e postura esbeltas: a cara não me era desconhecida. Tinham passado outros, e ainda outros viriam atrás; todos iam às suas namoradas. Era uso do tempo namorar a cavalo. Relê Alencar: “Porque um estudante (dizia um dos seus personagens de teatro de 1858) não pode estar sem estas duas cousas, um cavalo e uma namorada.” Relê Álvares de
Azevedo. Uma das suas poesias é destinada a contar (1851) que residia em Catumbi, e, para ver a namorada no Catete, alugara um cavalo por três mil-réis… Três mil-réis! tudo se perde na noite dos tempos!
Ora, o dandy do cavalo baio não passou como os outros; era a trombeta do juízo final e soou a tempo; assim faz o Destino. que é o seu próprio contra-regra. (CAPÍTULO LXXIII)
– Metalinguagem:
Linguagem usada para descrever algo sobre outra(s) linguagens, pode referir-se a qualquer terminologia ou linguagem usada para descrever uma linguagem em si mesma — uma descrição gramatical, por exemplo, ou um discussão sobre o uso de uma linguagem. Machado de Assis faz uso constantemente desse recurso, interpelando o leitor (ou a leitora) e tornando descontínua a leitura. Essa descontinuidade nos impede de misturar realidade com ficção. No caso machadiano, as digressões também produzem esse efeito.
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A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo. (CAPÍTULO CXIX)
Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. Vi as grandes raivas do mouro, por causa de um lenço. –um simples lenço!–e aqui dou matéria à meditação dos psicólogos deste e de outros continentes, pois não me pude furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo. Os lenços perderam-se. hoje são precisos os próprios lençóis; alguma vez nem lençóis há e valem só as camisas. Tais eram as idéias que me iam passando pela cabeça, vagas e turvas, à medida que o mouro rolava convulso, e Iago destilava a sua calúnia. Nos intervalos não me levantava da cadeira- não queria expor-me a encontrar algum conhecido. As senhoras ficavam quase todas nos camarotes, enquanto os homens iam fumar. Então eu perguntava a mim mesmo se alguma daquelas não teria amado alguém que jazesse agora no cemitério, e vinham outras incoerências, até que o pano subia e continuava a peça. O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público. (CAPÍTULO CXXXV)
Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão.
Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia. há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. (…) O mais é também análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa.
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. (CAPÍTULO II)
Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto de esperar, e vá espairecer a outra parte; casemo-nos. (CAPÍTULO CII)
Estes recursos tornam o tempo psicológico; tempo que transcorre no interior do personagem, produzindo uma ordem determinada pelo desejo ou pela imaginação do narrador ou dos personagens e refletindo vivências subjetivas, angustias e ansiedades. Trata-se do que decorre conforme o estado de espírito em que se encontra o narrador ou o personagem.