No Brasil, a presença das cantigas em nossa tradição se deve ao fato de os portugueses que para cá vieram incorporaram-nas em nosso imaginário. A tradição dos trovadores perpassa a cultura nordestina do cordel, do repente, da embolada, assim como a poesia dita erudita de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade.
A presença do Trovadorismo em nosso cancioneiro se observa tanto na abordagem temática como na estrutura musical. As Cantigas de Amigo, que eram feitas para cantar e dançar, tinham em sua estrutura o paralelismo e o refrão, marcas do nosso xote, como se observa na conhecidíssima Esperando na Janela, do pernambucano Targino Gondim. Das Cantigas de Amigo, permanecem também a presença do eu-lírico feminino – a mulher como voz enunciadora – que lamenta a perda do amado que se foi e provavelmente não voltará.
Das Cantigas de Amor, a nossa música guarda o Amor cortês, da Vassalagem amorosa, do sentimento declarado e não correspondido, são temas recorrentes na poesia romântica de Gonçalves Dias, nas composições de Roberto Carlos, Chico Buarque, assim como na música romântica, vulgarmente chamada de brega, nas várias fases do sertanejo.
Característica das Cantigas Satíricas, o deboche escrachado, de mau gosto, é comum do século XVII, na poesia de Gregório de Matos, não sem propósito apelidado de Boca do Inferno, no humor de Bussunda, dos sambistas do Rio de Janeiro e do stand up.
– TEXTOS PARA LEITURA
Brás pastor inda donzelo,
querendo descabaçar-se,
viu Betica a recrear-se
vinda ao prado de amarelo:
e tendo duro o pinguelo,
foi lho metendo já nu,
fossando como Tatu:
gritou Brites, inda bem,
que tudo sofre, quem tem
rachadura junto ao cu.
Gregório de Matos – poeta barroco do século XVII, usou os recursos do humor, para retratar a contemporaneidade, por isso o apelido de Boca do Inferno.
Ai Que Saudade D’Ocê
Não se admire se um dia
Um beija-flor invadir
A porta da tua casa
Te der um beijo e partir
Fui eu que mandei o beijo
Que é pra matar meu desejo
Faz tempo que eu não te vejo
Ai que saudade d’ocê
Se um dia ocê se lembrar
Escreva uma carta pra mim
Bote logo no correio
Com a frase dizendo assim
Faz tempo que eu não te vejo
Quero matar meu desejo
Te mando um monte de beijo
Ai que saudade sem fim
E se quiser recordar
Aquele nosso namoro
Quando eu ia viajar
Você caía no choro
Eu chorando pela estrada
Mas o que que eu posso fazer
Trabalhar é minha sina
Eu gosto mesmo é d’ocê
Composição de Vital Farias, disponível em https://www.letras.mus.br/geraldo-azevedo/277398/
– A composição de Vital Farias, dialoga com as Cantigas de Amor e de Amigo. Das primeiras, além da voz enunciadora masculina, representa o Amor cortês, a Vassalagem amorosa. Das Cantigas de Amigo, traz a mulher que lamenta a partida do Amado e anseia por sua volta. Ai que saudade docê é uma das mais conhecidas músicas populares do Brasil, e foi consagrada no trabalho Cantorias, de Geraldo Azevedo, Xangai e Elomar,
Queixa
Um amor assim delicado
Você pega e despreza
Não devia ter despertado
Ajoelha e não reza
Dessa coisa que mete medo
Pela sua grandeza
Não sou o único culpado
Disso eu tenho a certeza
Princesa, surpresa, você me arrasou
Serpente, nem sente que me envenenou
Senhora, e agora, me diga onde eu vou
Senhora, serpente, princesa
Um amor assim violento
Quando torna-se mágoa
É o avesso de um sentimento
Oceano sem água
Ondas, desejos de vingança
Nessa desnatureza
Batem forte sem esperança
Contra a tua dureza
Princesa, surpresa, você me arrasou
Serpente, nem sente que me envenenou
Senhora, e agora, me diga onde eu vou
Senhora, serpente, princesa
Um amor assim delicado
Nenhum homem daria
Talvez tenha sido pecado
Apostar na alegria
Você pensa que eu tenho tudo
E vazio me deixa
Mas Deus não quer que eu fique mudo
E eu te grito esta queixa
Princesa, surpresa, você me arrasou
Serpente, nem sente que me envenenou
Senhora, e agora, me diga onde eu vou
Amiga, me diga…
Disponível em http://www.letras.com.br/caetano-veloso/queixa
– Na letra da canção Queixa, há mais evidências do Trovadorismo, especificamente das Cantigas de Amor. A voz enunciadora é a de um eu-lírico masculino, o homem que faz a declaração do Amor cortês – amor assim delicado – revela a Vassalagem Amorosa – Princesa, Senhora – o sentimento declarado e não correspondido – Você pega e despreza, E vazio me deixa, você me arrasou. Caetano Veloso dialoga com a Poesia medieval, relendo-a, conforme uma das principais marcas de suas produções, interagir com todas as manifestações culturais, sem preconceito.
Olhos nos Olhos
Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mas nem porque
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você
Quando talvez precisar de mim
‘Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz
Chico Buarque, disponível em: https://www.vagalume.com.br/chico-buarque/olhos-nos-olhos.html
– A letra de Chico Buarque apresenta uma marca fundamental das Cantigas de Amigo, o eu-lírico feminino que tematiza a partida do Amado. Ao contrário das Cantigas medievais, ela não lamenta o homem que não mais terá, pois, depois de chorar, desesperar, deu a volta por cima e viveu outros amores. A voz enunciadora feminina encontra-se em outras composições de Chico Buarque de Holanda, é uma de suas características.
Amigo Apaixonado
Pensando bem, eu gosto mesmo de você
Pensando bem, quero dizer
Que amo ter te conhecido
Nada melhor que eu deixar você saber
Pois é tão triste esconder
Um sentimento tão bonito
Hoje mesmo vou te procurar
Falar de mim
Sei que nem chegou a imaginar
Que eu pudesse te amar tanto assim
Sempre fui um grande amigo seu
Só que não sei mais se assim vai ser
Sempre te contei segredos meus
Estou apaixonado por você
Esse amor entrou no coração
Agora diz o que é que a gente faz
Pode dizer sim ou dizer não
Ser só seu amigo não dá mais
Vitor e Leo, composição de Vítor Chaves, disponível em: https://www.vagalume.com.br/victor-leo/amigo-apaixonado.html
Reunião de Bacana
Se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão
Se gritar pega ladrão, não fica um
Você me chamou para esse pagode,
E me avisou: “aqui não tem pobre!”
Até me pediu pra pisar de mansinho, porque sou da cor,
Eu sou escurinho…
Aqui realmente está toda a nata: doutores, senhores,
Até magnata
Com a bebedeira e a discussão, tirei a minha
Conclusão:
Se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão
Se gritar pega ladrão, não fica um
Lugar meu amigo é a minha baixada,
Que ando tranquilo e ninguém me diz nada
E lá camburão não vai com a justiça, pois não há
Ladrão e é boa a polícia
Lá até parece a Suécia, bacana, se leva o bagulho e se
Deixa a grana,
Não é como esse ambiente pesado, que você me trouxe
Para ser roubado….
Se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão
Se gritar pega ladrão, não fica um
Composição de Ary do Cavaco e Bebeto de São João, disponivel em: https://www.letras.mus.br/bezerra-da-silva/1929977/
– Os dois últimos textos, Amigo Apaixonado/2008 e Reunião de Bacana/1980, apresentam pontos de contato com a poesia trovadoresca. Amigo Apaixonado lembra as Cantigas de Amor, como inúmeras composições de nosso cancioneiro popular. Reunião de Bacana retoma o deboche, o humor, o sarcasmo das Cantigas Satíricas, atitude comum nos sambas cariocas e no forró nordestino. É a permanência da tradição medieval portuguesa em nossa memória coletiva, renovando-a a cada geração de nossa produção cultural.
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