CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – A OBRA
– O autor
Mineiro de Itabira, formado em Farmácia, profissão que nunca exerceu, pois engajou cedo na Imprensa e no serviço público. Em 1925, com Emílio Moura e Aníbal Machado, fundou A Revista, publicação literária de divulgação do Modernismo em Minas Gerais. O contato com Oswald de Andrade e Mário de Andrade rendeu a publicação do poema No meio do caminho na Revista de Antropofagia e deu início à longa amizade com Mário.
Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1934, como chefe de gabinete do amigo Gustavo Capanema, ministro da Educação de Vargas, cargo que ocupou até 1945, quando assumiu a editoria do diário comunista Imprensa Popular, a convite de Luís Carlos Prestes. Alternou a atuação na Imprensa e no serviço público até a aposentadoria em 1962, dedicando-se, a partir de então, à sua obra, à tradução, à crítica e à colaboração em jornais e revistas.
Carlos Drummond de Andrade é o maior poeta brasileiro do século XX, o mais completo e de obra mais ampla, que abrange do Modernismo iconoclasta de 1922 à poesia de vanguarda das décadas de 1950/60, como o Concretismo.
Pesa contra ele o silêncio em dois momentos cruciais de nossa História, durante o Estado Novo e a ditadura militar de 1964, principalmente se se considerar o papel de Graciliano Ramos e Jorge Amado nos anos 1930 e de vários de seus conhecidos nos anos de chumbo.
Sua obra, nas décadas de 1970/80, já não representava mais renovação; não se alinhava às novas tendências geradas a partir da contracultura dos anos 1960. Morreu, em 1987, reconhecido internacionalmente, apesar de ser avesso a badalação. Segundo o crítico e escritor mexicano Otávio Paz, foi exatamente o que faltou ao poeta mineiro, marketing fora do Brasil, nos moldes do chileno Pablo Neruda, o que ampliaria não só a divulgação de sua obra, mas de toda a nossa poesia.
– Observe como o poeta se revela em um de seus poemas mais conhecidos:
Confidência do Itabirano
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
ANDRADE, Carlos Drummond de – Sentimento do Mundo
Esse é o poema de apresentação de Carlos Drummond de Andrade em Sentimento do Mundo. O eu poético abre o poema com referências à terra natal, Minas Gerais, mais especificamente a cidade de Itabira. Itabira, palavra de origem tupi, tem como significado pedra que brilha, ita/ pedra e bira/que brilha, sendo a cidade o centro da exploração de minério de ferro em Minas Gerais e o local de fundação da Companhia Vale do Rio Doce.
A relevância de ser Itabira deve-se à associação que o autor estabelece entre a sua personalidade e a cidade. Ambos, o eu poético e a cidade, são duros/resistentes, escuros/sombrios, como o ferro, por um lado; por outro, isolados/alheios, devido à localização da cidade, cercada
de serra.
Carlos Drummond de Andrade revela a herança que carrega da vida provinciana, o orgulho do ferro, o ícone religioso, o couro de anta; revela as atividades de sua terra e de sua gente; tive ouro, tive gado, tive fazendas – que se contrapõe a sua atual condição: funcionário público.
A paisagem ressalta o paradoxal prazer de sofrer, por sua tristeza, falta de perspectivas, que tolhe a vontade de amar do poeta, como também revela a constatação, a consciência da condição humana que o eu poético revela.
– O contexto
Carlos Drummond de Andrade entrou em contato com o Modernismo em seu nascedouro, recebendo, de imediato, as notícias e a influência da revolução cultural de 1922 em São Paulo, a Semana de Arte Moderna. Desempenhou em Minas Gerais o papel de divulgador do ideário vanguardista, principalmente a partir de sua amizade com os dois Andrades paulistas, Oswald e Mário; este, um de seus maiores confidentes. Causou escândalo com o célebre poema da pedra, publicado na Revista de Antropofagia, em 1928. A obra do poeta, porém, enquadra-se no momento de amadurecimento do Modernismo brasileiro, a Segunda Fase – 1930 a 1945 – ao lado de Vinícius de Morais, Cecília Meireles, Jorge de Lima e Murilo Mendes.
A poesia da Segunda Fase Modernista apresenta tanto as conquistas das Vanguardas como as formas poéticas da tradição. Não há mais o ímpeto iconoclasta de 1922, já que o processo de ruptura com o passado se concretizara. O segundo momento modernista representa o amadurecimento do movimento. Os poetas agora incorporam a renovação da Primeira Fase: o verso livre, o ritmo psicológico, a oralidade da linguagem, o prosaísmo, o senso crítico; e resgatam as formas fixas, o soneto, as redondilhas e, na temática, o caráter metafisico, espiritualista, transcendental; além disso, a musicalidade, o apelo sensorial do Simbolismo, influência do grupo católico do Rio de Janeiro, liderado por Augusto Frederico Schmidt e que teve, na revista Festa, o órgão divulgador, em torno do qual aconteceu a poesia da Segunda Fase.
O poema Mãos Dadas sintetiza a postura estética e discursiva da poesia da Segunda Fase Modernista, como veremos na leitura a seguir:
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
ANDRADE, Carlos Drummond de – Sentimento do Mundo – p.
O poema Mãos Dadas apresenta a sua construção em versos livres e brancos, a estrofação irregular; a linguagem, embora observando a norma culta da Língua, caracteriza-se pela clareza dos vocábulos e das construções sintáticas.
O poema centra-se no emissor, a primeira pessoa, mas enfatiza o outro/meus companheiros, e os dramas da humanidade, característica fundamental do lirismo moderno. O eu poético despreza o lirismo dos românticos, a contemplação da paisagem e o escapismo, como também o pessimismo e o desencanto dos decadentistas. Predomina agora não mais o sentimento do eu, mas o sentimento do mundo.
O lirismo moderno, construído a partir das tensões dos anos 1930/40, evidencia a preocupação do eu poético com a realidade que o cerca – Estou preso à vida – a solidariedade para com o outro – e olho meus companheiros/os homens presentes – tematiza o mundo que ele vive e tenta compreender –considero a enorme realidade – e a História/o tempo histórico vivenciados – O tempo é minha matéria, o tempo presente.
O foco no momento vivido exige do eu poético consciência de mundo, mesmo e porque o objetivo da Arte agora é transformar a realidade. Viver e melhorar a vida presente é imperativo, por isso o poeta prende-se a ela/a vida e descarta toda forma de fuga da realidade: seja no tempo/o passado, o futuro, seja no espaço/as ilhas, raptado por serafins, ou pela morte.
– A obra
Carlos Drummond de Andrade foi jornalista, crítico, cronista, contista, mas se consagrou como poeta, representando na Poesia o ponto alto da análise do ser humano, da representação da alma/psique do indivíduo em nossa Literatura, assim como Machado de Assis no romance e no conto, e Nelson Rodrigues no teatro.
A obra do poeta apresenta marcas individuais acentuadas, como as referências a Minas e à infância em Itabira, mas o traço inconfundível de Drummond é seu aspecto gauche, o eu retorcido, desencontrado, que busca se reconhecer em o mundo complexo e povoado de indivíduos com o mesmo grau de incomunicabilidade, na vida do século XX.
O EU estar no MUNDO, o processo dialético do EU com o MUNDO, fundamentou os estudos de Affonso Romano de Sant’Ana, um dos principais críticos do Brasil, sobre a poesia de Drummond, desdobrando sua produção em três atitudes:
Eu maior que o mundo – poesia irônica
Eu menor que o mundo – poesia social
Eu igual ao mundo – poesia metafísica
Eu maior que o mundo, o primeiro passo da dialética, encontra-se principalmente, mas não somente, nos primeiros livros do poeta mineiro – Alguma Poesia/1930 e Brejo das Almas/1934. Esses dois livros refletem ainda ecos da Primeira Fase Modernista, como o humor, o retrato do cotidiano, a liberdade plena, mas já registram o domínio pleno da linguagem e das estruturas poéticas, constituem a poesia reflexiva, de percepção dos conflitos humanos, que fizeram de Drummond nosso poeta maior.
Este momento do poeta apresenta um eu-poético que ri do outro, do mundo, como no poema Cidadezinha Qualquer, de Alguma Poesia:
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar… as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
Ou em Poema de Sete Faces, na abertura de Alguma Poesia:
Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
O segundo passo da dialética drummondiana – Eu menor que o mundo – revela-se em sua poesia social, de crítica contundente, reflexo do contexto brasileiro e mundial, e concentra-se principalmente nos livros Sentimento do Mundo/1940, José/1942 e A Rosa do Povo/1945. Essas obras acentuam o eu-poético sensibilizado com o drama do outro e do mundo. O momento agora não é de humor, de ironia, muito menos de arrogância. Encontramos agora o eu poético encarando o outro, o mundo, em toda sua tensão, como se percebe na leitura do poema Mundo Grande, de Sentimento do Mundo:
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo.
Por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
A abertura do poema afirma a pequenez do EU diante do mundo e sua disposição ao engajamento, ao envolvimento com o outro/preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
A afirmação da dimensão do eu poético em um mundo grande, maior do que ele esperava e, consequentemente, repleto de dramas.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens.
as diferentes dores dos homens.
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem… sem que ele estale.
E é um mundo muito mais amplo que a rua, mundo atingível pelos navios, mundo de riquezas, raças e dores diversas
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! vai’ inundando tudo…
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos —— voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar.
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
— Ó vida futura! nós te criaremos
ANDRADE, Carlos Drummond de – Sentimento do Mundo – p.
Observe esta postura no poema Elegia 1938, de Sentimento do Mundo:
Elegia 1938
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
A elegia é uma composição clássica; trata-se de um poema de conteúdo fúnebre, triste. No título acima, 1938 é, provavelmente, a data em que o poema foi escrito; o tempo era de tristeza, de maus presságios; no mundo, com Hitler na Alemanha ou Mussolini na Itália, anunciava-se o fim das liberdades individuais e pressentia-se que uma guerra estava a caminho.
Tratava-se de um mundo caduco, com tiranos que nos roubavam as alegrias simples da vida. Nesse contexto, ter consciência da realidade era sentir-se impotente diante da Grande Máquina.
A realidade presente transferia para outro século a felicidade coletiva. Perceba que o termo felicidade coletiva é coerente com o pensamento comunista da época.
Nesse sentido, a oposição à ilha de Manhattan, grande centro financeiro do mundo, comprovava, também, uma postura antiburguesa do eu-lírico.
Assim, entende-se que o termo Grande Máquina pode ter sido usado em sentido genérico, referindo-se a tudo que se opunha ao mundo livre sonhado por intelectuais comunistas.
Por fim, é importante dizer que se o poema tivesse sido escrito hoje, depois do atentado de 11 de setembro, o seu desfecho soaria muito mal.
A terceira etapa na obra de Carlos Drummond de Andrade é a Metafísica, a do eu igual ao mundo. Esse período revela um sujeito que se desencantou com tudo, que não acredita mais na solução social para o mundo. Assim, eu e mundo estão em pé de igualdade: ambos carecem de significação, de sentido para existirem. É isso que alguns críticos chamam de niilismo: em Drummond, principalmente, o termo denota uma negação, uma reflexão existencial que nega a própria existência. Essa fase é representada pelas obras Claro Enigma/1951, Fazendeiro do ar/1955, Vida passada a limpo/1959 e Lição de coisas/1962. Perceba esse pessimismo nos versos abaixo:
Então, desanimamos. Adeus, tudo!
A mala pronta, o corpo desprendido.
Resta a alegria de estar só e mudo.
De que se formam nossos poemas? Onde?
Que sonho envenenado lhes responde,
Se o poeta é um ressentido, e o mais são nuvens?
Esse momento de negações reflete-se, também, na conclusão de que a poesia é incomunicável; por isso, coerente com as experimentações estilísticas da época (como o Concretismo), Drummond, no livro Lição de coisas/1962, violenta a morfossintaxe tradicional, construindo versos carregados de substantivos incomunicáveis. Veja:
O fácil o fóssil
o míssil o físsil
a arte o infarte
o ocre o canopo
a urna o farniente
a foice o fascículo
a lex o judex
o maiô o avô
a ave o mocotó
o só o sambaqui
Além desses três momentos importantes, considera-se uma quarta fase da poesia drummondiana, que é a Memória. Nesse período, o autor retoma temáticas que nortearam toda a sua obra. É o que se percebe na série Boitempo/1973 e em Farwell/1996.
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